O RESOLUÇÃO CIT Nº 29/2025 DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS): ANÁLISE CRÍTICA DO PRONTUÁRIO ELETRÔNICO ENTRE MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO E IMPERATIVO DA PROTEÇÃO DE DADOS

Introdução
Em outubro de 2025, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) aprovou a Resolução nº 29/2025, que define as diretrizes do Prontuário Eletrônico do Sistema Único de Assistência Social (Prontuário SUAS). Publicada no Diário Oficial da União em 16 de outubro, a norma consolida o prontuário como um direito dos usuários do SUAS, articulado diretamente com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, Lei nº 13.709/2018).
O prontuário deixa de ser apenas um formulário ou software e passa a ser um registro profissional estruturado, com finalidades claras: apoiar a garantia de direitos socioassistenciais por meio da vigilância socioassistencial, da gestão, da pesquisa e da execução de serviços e benefícios.
Ao mesmo tempo, a resolução apresenta sete diretrizes centrais que envolvem integralidade da proteção, integralidade do trabalho social, ampliação de acesso, simplificação dos registros, interoperabilidade, proteção de dados e acesso diferencial por perfil de trabalhador.
Do ponto de vista municipal, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) destaca o potencial do Prontuário SUAS como instrumento de qualificação da gestão, mas alerta para a necessidade de atenção às regras e às exigências técnicas e financeiras para implementação.
Em diálogo com experiências internacionais de prontuários eletrônicos em saúde e cuidados sociais, especialmente no Reino Unido, observa-se que a digitalização dos registros pode fortalecer a continuidade do cuidado, a integração entre políticas e a transparência, mas também traz desafios recorrentes: financiamento, infraestrutura de TI, qualificação de equipes, usabilidade de sistemas e governança de dados.
O artigo a seguir aprofunda a análise da Resolução CIT nº 29/2025, discute seus desafios reais de implementação e aproxima o debate da experiência internacional, com foco no que isso significa para municípios e para quem atua na consultoria e no fortalecimento da gestão do SUAS.
1. O Prontuário Eletrônico do SUAS: marco regulatório e sentido político
A Resolução CIT nº 29/2025 dispõe sobre diretrizes do Prontuário Eletrônico do SUAS, explicitando, logo no art. 1º, sua consonância com a LGPD.
No art. 2º, o Prontuário SUAS é definido como direito dos indivíduos e das famílias usuárias do sistema, viabilizado por meio de um sistema autônomo, com finalidade de registro profissional de informações relativas ao conjunto de serviços e benefícios do SUAS.
Isso tem implicações importantes:
- O prontuário não é apenas uma ferramenta administrativa, mas parte do conjunto de garantias de direitos.
- O registro passa a ser compreendido como dimensão ética e técnica do trabalho social.
- A unidade pública e a equipe de referência assumem responsabilidade direta pela guarda, confidencialidade e segurança das informações.
O art. 3º reconhece que o prontuário contém dados pessoais, incluindo dados pessoais sensíveis, vinculados à finalidade de implementar a política de assistência social, o que exige aderência estrita à LGPD e às salvaguardas de proteção de dados.
Já o art. 4º explicita que as informações devem ser utilizadas para assegurar direitos socioassistenciais por meio da vigilância, da gestão, da pesquisa e da execução dos serviços, vedando o tratamento dos dados para fins estranhos à política de assistência social.
Em síntese: o Prontuário SUAS é reposicionado como um eixo de integração entre proteção social, gestão qualificada e proteção de dados, com responsabilidade jurídica clara para os entes federativos.
2. O que o Prontuário SUAS é e o que não é
A partir da resolução, é possível delimitar com mais precisão o lugar do prontuário no SUAS.
2.1. O que ele é
- Um direito dos usuários do SUAS, não apenas uma exigência administrativa.
- Um registro profissional do trabalho social com famílias e indivíduos, preferencialmente em meio eletrônico, que deve refletir a integralidade dos serviços e benefícios utilizados.
- Uma ferramenta estratégica para vigilância socioassistencial, planejamento, monitoramento e avaliação, se os dados forem coletados e utilizados de forma consistente.
- Um repositório de dados pessoais sensíveis, protegido pela LGPD, o que implica obrigações legais claras em relação a finalidade, adequação, necessidade, segurança e não discriminação.
2.2. O que ele não deve ser
- Não é um repositório irrestrito de dados para qualquer uso governamental ou privado.
- Não é um sistema de vigilância social desvinculado da garantia de direitos.
- Não é apenas mais uma camada burocrática de registro, sem retorno para o trabalho de ponta.
- Não é um “banco de dados social” para ser utilizado comercialmente ou para fins de controle que extrapolem o escopo da assistência social.
Essa delimitação é central para evitar usos indevidos, como cruzamentos de dados discriminatórios, seleção de beneficiários por critérios não transparentes ou compartilhamento com terceiros sem autorização ou base legal.
3. As diretrizes nucleares da Resolução CIT nº 29/2025
O art. 5º apresenta sete diretrizes que funcionam como roteiro técnico e ético para implementação do prontuário:
- Integralidade da proteção da pessoa e da família
O prontuário deve permitir uma visão articulada da trajetória da família no SUAS, evitando registros fragmentados por serviço. - Integralidade do trabalho social
O sistema precisa apoiar o trabalho da equipe, permitindo registro qualificado de diagnósticos, planos de acompanhamento, encaminhamentos e resultados. - Ampliação de acesso a direitos e proteção social
Os dados devem ser usados para identificar lacunas de cobertura e vulnerabilidades, subsidiando ações proativas de busca ativa e proteção. - Simplificação e facilitação de registros
A lógica de design do sistema precisa considerar a carga de trabalho das equipes e a experiência dos usuários que desejam acessar seus dados. - Interoperabilidade com outras políticas públicas
O prontuário deve “conversar” com sistemas de saúde, educação, habitação, trabalho e renda, entre outros, usando padrões seguros e respeitando o sigilo. - Proteção, privacidade e confidencialidade
A resolução reafirma os princípios da LGPD, incluindo minimização de dados, segurança, não discriminação e responsabilização. - Acesso diferencial por perfil
O acesso deve ser regulado de acordo com cargo, função, unidade e formação, garantindo o princípio do “necessário para o trabalho” e evitando acesso indevido a dados sensíveis.
Além disso, o art. 6º lista princípios como autenticidade, centralidade na família e no território, uso ético, transparência, eficiência e melhoria da gestão.
4. Análise crítica: desafios reais de implementação
4.1. Financiamento, infraestrutura e desigualdades federativas
A resolução define o “o que” deve ser feito, mas não detalha mecanismos de financiamento nem cronogramas de implementação.
Para os municípios, isso se traduz em:
- Necessidade de investir em equipamentos, conectividade, servidores, segurança cibernética e suporte técnico.
- Demanda de contratação ou capacitação de equipes de TI.
- Risco concreto de aprofundar desigualdades entre municípios com forte capacidade técnica e financeira e municípios pequenos, com alta demanda socioassistencial e pouca estrutura.
A CNM destaca justamente essa preocupação ao orientar que gestores municipais fiquem atentos às exigências técnicas, de segurança e de guarda dos dados, reforçando a responsabilidade local.
4.2. Interoperabilidade como desafio de governança
A diretriz de interoperabilidade é desejável, sobretudo em uma política que depende de articulação com saúde, educação e outras áreas. Porém, internacionalmente, a integração entre sistemas de registros sociais e de saúde tem se mostrado um desafio complexo, envolvendo padronização de dados, contratos com fornecedores, governança multiagência e compatibilidade tecnológica.
No caso brasileiro, isso significa:
- Necessidade de definição de padrões nacionais de dados e APIs.
- Ajuste de sistemas legados municipais e estaduais.
- Governança federativa que coordene União, Estados e Municípios em torno de um modelo comum.
4.3. LGPD além do papel: cultura de proteção de dados
A resolução está alinhada com a LGPD, mas o desafio é transformar essa aderência legal em cultura institucional. Isso implica:
- Formação sistemática de equipes do SUAS em proteção de dados, sigilo e uso ético da informação.
- Revisão de rotinas de atendimento, armazenamento e compartilhamento de dados.
- Estruturação de mecanismos de auditoria de acesso, registro de logs e resposta a incidentes.
Experiências internacionais mostram que a proteção de dados em sistemas de registros eletrônicos depende tanto de tecnologia quanto de políticas claras e treinamento contínuo.
4.4. Qualidade da informação e uso para gestão
A resolução cria as condições normativas para uso dos dados na vigilância socioassistencial, mas não garante, por si só, qualidade de informação.
Sem:
- orientações claras sobre padrões mínimos de registro,
- acompanhamento da completude e consistência dos dados,
- indicadores de qualidade e uso da informação na gestão, há o risco de que o prontuário se torne mais uma obrigação formal, pouco conectada às decisões de gestão e às estratégias de proteção social.
5. Diálogo com experiências internacionais de prontuários eletrônicos
Embora ainda seja limitada a literatura específica sobre prontuários eletrônicos na assistência social, há um conjunto crescente de estudos sobre digitalização de registros em cuidados sociais, especialmente em países que integram saúde e assistência.
5.1. Reino Unido: Digital Social Care Records
No Reino Unido, o programa de Digital Social Care Records (DSCR) busca garantir que a maior parte dos serviços de cuidados sociais adultos use registros digitais interoperáveis até 2025.
Alguns achados relevantes:
- Revisões rápidas de evidências apontam benefícios em continuidade do cuidado, compartilhamento seguro de informações, redução de registros duplicados e suporte à tomada de decisão.
- Ao mesmo tempo, relatórios indicam desafios relacionados à usabilidade dos sistemas, carga de registro para equipes, resistência à mudança e necessidade de apoio intensivo para provedores menores.
Um estudo de escopo recente sobre implementação de registros digitais em cuidados sociais adultos destaca a importância de:
- definir expectativas realistas de benefícios no curto prazo,
- combinar investimento em tecnologia com investimento em pessoas e processos,
- adaptar soluções à realidade de serviços pequenos e dispersos.
5.2. Lições gerais para o SUAS
Da leitura cruzada dessas experiências, emergem lições que dialogam diretamente com a implementação do Prontuário SUAS:
- Tecnologia não resolve sozinha
Sistemas digitais só produzem ganhos quando vêm acompanhados de revisão de fluxos, treinamento e acompanhamento sistemático. - Interoperabilidade exige governança, não apenas integração técnica
É preciso clareza sobre quem decide padrões, quem financia integrações e como lidar com conflitos entre fornecedores e órgãos públicos. - Capacidade dos pequenos provedores é um ponto sensível
No caso brasileiro, isso se projeta nos municípios menores, com estruturas de TI e conectividade mais frágeis, que podem exigir modelos de apoio consorciado ou soluções mais simples, mas seguras. - Avaliação é fundamental
Evidências internacionais mostram que o impacto real em resultados de cuidado nem sempre é imediato e que falhas de implantação podem gerar frustração ou desconfiança.
Essas lições reforçam a ideia de que a Resolução CIT nº 29/2025 é apenas o ponto de partida. A forma como União, Estados, Municípios e organizações da sociedade civil vão conduzir a implantação definirá se o prontuário será uma alavanca de qualificação do SUAS ou apenas mais uma obrigação.
6. Passos práticos para municípios e equipes gestoras
Abaixo, um conjunto de passos práticos que podem orientar gestores municipais e equipes que desejam implementar o Prontuário SUAS em coerência com a resolução.
6.1. Diagnóstico de maturidade digital e de governança de dados
- Mapear equipamentos, conectividade, infraestrutura de TI e softwares já utilizados na rede socioassistencial.
- Identificar se há política municipal de proteção de dados e se existe pessoa ou unidade responsável pelo tema.
- Levantar rotinas atuais de registro e uso de informações: quem registra, em que formato, onde guarda, quem acessa.
6.2. Planejamento da solução tecnológica
- Verificar orientações do MDS sobre solução nacional, requisitos mínimos e padrões de interoperabilidade.
- Definir se o município adotará solução nacional, estadual, consorciada ou própria.
- Garantir que o sistema atenda às diretrizes de acesso diferencial, proteção de dados, registro qualificado e relatórios gerenciais.
6.3. Definição de papéis e responsabilidades
- Nomear uma instância responsável pela governança do prontuário (por exemplo, coordenação de vigilância socioassistencial em diálogo com TI).
- Atualizar ou elaborar política interna de privacidade e proteção de dados para o SUAS municipal, alinhada à LGPD e à resolução.
- Formalizar perfis de acesso por função, unidade e serviço.
6.4. Capacitação e acompanhamento das equipes
- Realizar formações específicas sobre: LGPD aplicada ao SUAS, sigilo profissional no ambiente digital, preenchimento qualificado do prontuário, uso dos dados para planejamento e vigilância.
- Produzir materiais simples (guias, fluxogramas, modelos de registro) para uso cotidiano das equipes de referência.
- Acompanhar, nos primeiros meses, dificuldades de uso do sistema e ajustar processos.
6.5. Pilotos, monitoramento e avaliação
- Iniciar com projetos-piloto em alguns serviços ou territórios, testando fluxos, indicadores e relatórios.
- Definir indicadores mínimos de acompanhamento, por exemplo:
- percentual de famílias com prontuário eletrônico ativo,
- completude dos campos essenciais,
- tempo médio entre atendimento e registro,
- número de acessos por perfil,
- incidentes de segurança registrados e tratados.
- Revisar periodicamente os resultados, comunicando aprendizados para toda a rede.
6.6. Cooperação intersetorial e federativa
- Articular com saúde, educação, habitação e outras políticas para planejar, desde cedo, a interoperabilidade, com acordos claros de compartilhamento de dados.
- Buscar apoio de consórcios, associações municipais e estados para soluções técnicas compartilhadas, especialmente para municípios com menor capacidade de investimento.
7. Limites, incertezas e pontos de atenção
Alguns pontos ainda dependem de definição e acompanhamento:
- A Política Nacional de Privacidade e Proteção de Dados do Prontuário SUAS, a ser regulamentada pelo MDS, será decisiva para detalhar responsabilidades, padrões de segurança e fluxos de compartilhamento.
- Não há, até o momento, cronograma nacional público com metas graduais de implantação por tipo de município, o que pode gerar ritmos desiguais e incertezas.
- A experiência internacional mostra que, sem forte investimento em suporte e usabilidade, é comum a percepção de aumento de burocracia para as equipes de ponta, o que pode gerar resistência.
- A avaliação do impacto do Prontuário SUAS sobre resultados concretos de proteção social ainda dependerá de pesquisas futuras, já que o marco regulatório é recente.
Quando essas definições forem publicadas, será importante atualizar diagnósticos, planos municipais e instrumentos de consultoria.
8. Considerações finais
A Resolução CIT nº 29/2025 representa um avanço importante no esforço de modernização e qualificação do SUAS, ao colocar o prontuário no centro da relação entre direito à proteção social, gestão baseada em evidências e proteção de dados pessoais.
Ao mesmo tempo, a experiência internacional com registros eletrônicos em saúde e cuidados sociais ensina que o sucesso não está garantido apenas pela existência da norma ou da tecnologia. Ele depende de:
- financiamento adequado,
- governança consistente,
- apoio intensivo às equipes na ponta,
- atenção às desigualdades entre municípios,
- capacidade de transformar dados em decisões concretas de proteção social.
Para consultores, gestores e equipes técnicas, o Prontuário SUAS abre campo para repensar processos, pactuar responsabilidades e construir, de forma gradual, uma cultura de gestão orientada por dados e pelos direitos das famílias.
Referências
Confederação Nacional de Municípios. Publicada Resolução que define diretrizes do Prontuário Eletrônico do Suas. Portal CNM, 12 nov. 2025.
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Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Publicada Resolução CIT nº 29, de 6 de outubro de 2025 – Diretrizes do Prontuário SUAS. Blog Rede SUAS, 16 out. 2025.
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Dados do Prontuário SUAS passam a ter mais segurança e transparência com novas diretrizes. Portal gov.br, 10 nov. 2025.
The Strategy Unit / NHSX. Benefits of Digital Social Care Records. Relatório técnico, 2022.
Noble, J. Choosing an electronic case management system for your organization. New Philanthropy Capital, jan. 2018.




